quinta-feira, 1 de março de 2018

Das aventuras da Música em Portugal


Foi em 1935 que saiu a primeira versão impressa das obras para teclado de José António Carlos Seixas. Desta versão, o primeiro volume de “Cravistas Portugueses”, generosamente custeada pela editora B. Schott’s Söhne, constavam apenas doze das centenas de sonatas que o compositor teria criado durante os seus parcos trinta e oito anos de vida e fazem hoje parte do espólio que sobreviveu, quer ao tempo, quer (imagine-se!) ao incêndio que deflagrou no Palácio da Ajuda de Lisboa aquando o terramoto de 1755. Longe de apresentarem o arrojo do mestre de Coimbra, mas ainda assim um marco importante na percepção estrangeira sobre a música portuguesa, esta dúzia de sonatas primou de atenção de musicólogos e intérpretes internacionais. Estava lançada a primeira pedra na reconstrução de um território há muito perdido nas estepes nacionais, o da música do passado português.
A Sonata nº 8 em Dó Maior faz parte desse território. Dotada de um espírito pomposo mas nada provinciano (ou não adoptassem as várias sonatas de Carlos Seixas um estilo declaradamente lusitano), esta sonata, junto com as restantes, anunciou os primórdios da forma-sonata clássica. Com efeito, apesar de no seu tempo terem sido chamadas “tocatas” por possuírem uma estrutura bipartida, o facto é que nas sonatas para teclado de Carlos Sextas podemos ver o estado embrionário da noção de “andamento”: as “tocatas”, para além da parte inicial e da quase-sempre-dança final, apresentam uma ponte musical intermédia de carácter contrastante, muitas vezes melodioso e introspectivo, prenúncio dos segundos andamentos lentos e galantes da sonata clássica. Ainda que Carlos Seixas denotasse uma forte resistência em adoptar estilos estrangeiros, não poderemos negar as influências francesas e sobretudo italianas nas obras para teclas do compositor, não fora então o seu convívio com Domenico Sclarlatti, ele próprio preceptor de música da princesa Maria Bárbara de Bragança durante um curto espaço de tempo, até à mudança da infanta portuguesa para Madrid por ocasião do seu casamento com o príncipe herdeiro da coroa espanhola.
Contudo, fora Portugal um país central e as obras do mestre de Coimbra teriam voado para mais altas paragens! Não é no pássaro que está a capacidade para voar e sim nas asas e José António Carlos Seixas (não confundamos capacidade com habilidade) quedou-se pelos céus solarengos mas muito pouco abertos do território português. Não se julgue portanto que tal se devesse a falta de talento ou ainda de empreendimento, ou não fora Carlos Seixas o compositor da corte numa época em que brotavam miniaturas não menos dignas do esplendor de Versalhes levadas a cabo por D. João V, o Magnânimo. Magnânima poderia ter sido também a sua vontade que, à semelhança do que sucederia nos séculos posteriores, o que nasce em Portugal em Portugal está, neste “canteiro à beira mar plantado” de difícil acesso (por diversas vezes Portugal pecou simplesmente devido à sua posição geográfica, tão útil para “dar mundos novos ao mundo”, mas tão ingrata para trazer o mundo para dentro!) e para o qual, se era difícil chegarem as novidades artísticas do resto da Europa, também difícil era para um artista português mostrar o seu rosto lá fora. As veias da criação morriam em Espanha, o coração da Península e, se acaso derramassem uma gota que fosse para lá dos montes de Pirene, tal se afigurava um acontecimento fortuito cujas repercussões raramente voltavam à origem. Assim esteve a música de Carlos Seixas até ao início do século XX, sufocada na própria terra em que deu flor e tendo como único perfume o cheiro bafiento de colecções particulares e de arquivos por muito tempo intocáveis. Lembremos o modesto lírio-do-vale que, pelas noites de Maio, agracia a Natureza com o seu misterioso mas distinto perfume. Não poderemos encontrar um lírio-do-vale vibrando jubiloso com as boninas durante os cálidos dias de Primavera. A Beleza e a Criação são, elas própria, produtos das existência das sombras em superfícies iluminadas. Luz descompassada torna o mundo disforme. É a sombra dá a identidade. E, perguntemo-nos: até que ponto a redescoberta e valorização do que há de mais sombrio e oculto no passado português não será outro futuro mundo a dar ao mundo?






sábado, 27 de janeiro de 2018

Do Canto Gregoriano e do Conhecimento


Faz não muito tempo que, passeando pela calçada baça da rua de Cedofeita, numa tarde já fremente de algum ardor natalício, decidi satisfazer um dos meus pequenos desejos e levar comigo um livro da livraria das Edições Paulinas. No final e sem exagero, após cerca de duas horas a percorrer as estantes a pente fino com os olhos, decidi abrir mão de uma módica quantia a troco de um manual de canto gregoriano. Futilidade minha talvez, pensei por uns instantes… Afinal, que serventia teria para mim aquele livro? Não pretendo tornar-me salmista (pelo menos num futuro próximo, porque o futuro distante ninguém o sabe) e tão pouco preciso de ler, muito menos entoar, música religiosa maioritariamente medieval e muito menos entoá-la. Contudo foi uma tarefa a que me propus com certo apreço: pelo menos não poderia dizer que não estava a entrar no espírito da quadra. Assim levei o livro ao balcão, troquei o papel por outro papel, o que não deixa de ser irónico se equiparado o valor, real ou abstracto, de ambos, rejeitei o saco como de costume e afastei-me em direcção a lugar nenhum. Folheei as primeiras páginas, um olho na rua e outro nas ruas, não fosse por acaso ser antes eu a atropelar um carro e, por uns segundos, recordei o meu dilema inicial e confesso ter sentido até um nó no ventre. Sempre que compro um livro sinto, por momentos, um leve pesar e parte do meu estômago entoa um quase requiem pelo dinheiro enterrado na caixa registradora. Não que, postas as coisas na mesa, tenha sido um gasto fútil; na verdade economizei para aquele fim. Ainda assim não consigo deixar de perder a fé e de perguntar: mas será mesmo necessário? Não creio vir a precisar algum dia da minha vida de ler canto gregoriano… E ainda assim, chego todas as vezes à conclusão, talvez precise todos os dias daquilo que leio e conheço e de que na prática não preciso… O facto é que acredito que todo o conhecimento, por mais que nos tenham acostumado ao contrário, é útil indiferenciadamente e em qualquer estilo de vida em que se conhece. Acredito que há utilidade directa e indirecta, sendo que a primeira é rapidamente aplicável na vida prática e a segunda é a essência. Uma é o cálice da flor, a outra o perfume. Por muito bela que seja, escolhemos para nosso deleite a que tem o melhor dos perfumes e por muito útil que seja ao pássaro voar, o mundo seria seguramente mais triste se lhe faltasse o canto. Contudo não se diga que as faculdades indirectas não são úteis; são, isso sim, o pano de fundo. O conhecimento imediatamente prático é a acção; o restante é o modo de agir.
Vivemos numa sociedade de tecnocratas. Pesamos o lucro imediato e concreto por oposição a uma outra infinidade de lucros que nos esquecemos que são úteis. A dada altura esquecem-se de nos ensinar que o conhecimento de valor não é apenas aquele que se enquadra na pequena fracção de ciência que escolhemos dedicar-nos o resto da vida, espera-se… São salutares, a título de exemplo, os casos de estudantes de música que conhecem de nome o professor qualquer coisa da escola de para lá das fronteiras que foi discípulo de outro igual e que por sua vez teve pelo período de dois meses um aluno que hoje dá aulas às terças e aos sábados no conservatório de outro lugar além-mundo mas que, quando indagados, não fazem ideia de quem foi Almeida Garrett, isto porque os há e contribui para o desmoronar do que eu acreditei ser o ideal do músico, melhor ainda, do artista que é uno com a cultura… mas poderia também citar o estudante de direito que cita uma frase o Tratado da Política de Aristóteles sem nunca ter folheado uma página ou outros tantos exemplos. Claro está que esta não é uma coroa que assente na cabeça de todos, felizmente… Mas a tecnocracia intelectual é um embrião que plantam na terra das mentes férteis dos jovens desde cedo e que, invariavelmente, em solos mais férteis acabarão por dar fruto. Pregam-nos desde cedo que devemos estipular metas e muito bem o fazem e ensinam-nos a caminhar na direcção dessas metas; mas raras vezes no ensinam que para além dos nossos pés treinados existem outros meios de transporte. Estes meios de transporte são o conhecimento de utilidade indirecta. Para mais um meio de transporte não se desloca por si só: é necessário um homem que o faça mover. No mesmo sentido todo e qualquer tipo de conhecimento, do mais ao aparentemente menos pertinente para a nossa vida prática pode, a dada altura, ajudar-nos a atingir os nossos fins… desde que para isso, tal está, peguemos no volante e o conduzamos nessa direcção.
Da condução da nossa vida e, portanto, de todas as nossas vidas individuais, depende também a condução do mundo. Realisticamente falando não precisamos de uma paz armada para garantir a felicidade e os direitos no mundo: o conceito de "paz na guerra" é um oxímoro demasiado ambivalente para ser exequível e auto-anula-se. Serei talvez ingénua, mas acredito que só a globalização do conhecimento na formação dos indivíduos poderá um dia construir uma verdadeira sociedade feliz e justa; não tanto com a sofocracia da República apresentada por Platão em que os sábios governam os restantes, mas em que o sábio será uma realidade em todos os indivíduos e não apenas em alguns. Só o conhecimento pode livrar genuinamente o mundo dos seus males. O conhecimento leva à compreensão mas quem conhece também necessário que compreenda. “Procura o conhecimento desde o berço à sepultura.” Diz-nos um hadith do Islão. E não é por acaso que é desta religião em concreto que escolho uma frase que faça eco deste texto.
Atrevamo-nos a conhecer sem calculismo e acreditar na viabilidade no conhecimento pelo prazer de conhecer. Convertermo-nos ao conhecimento é convertermo-nos à verdadeira natureza humana. Acredito que a missão do ser humano neste mundo seja conhecer. Porque só conhecendo se pode ver e conhecer para além das barreiras do senso-comum e da apreensão de ideias imediatas. Porque escolher o caminho do conhecimento é escolher a via da razão emoção e da justiça (porque quanto conhecível não se conhece tão somente sentindo!). Conhecendo se conhece; e quem conhece louva em si todas as maravilhas do Mundo...



sábado, 30 de dezembro de 2017

Do Desconcerto do Tempo

Quinta-feira, vinte e quatro de Outubro de mil novecentos e vinte e nove. A par da chegada da grande depressão, o conhecido crash da bolsa de Wall Street, que mergulharia os países do mundo inteiro numa crise sem precedentes, chegava também ao continente americano a pintora polaca Maria Górska, de pseudónimo artístico Tamara de Lempicka, sem o saber que seria o seu primeiro dia de estada num país que lhe serviria como refúgio no tempo em que os regimes totalitários assomavam a Europa e em que a Juventude Hitleriana dava as primeiras passadas de marcha nos Alpes suíços. Mal sabia também a Mulher de Ouro, quando se deslocou de vez do Velho Continente para o Novo Mundo dez anos depois, em mil novecentos e trinta e nove, que o seu título de rainha da Arte Déco usurpado junto com a liberdade dos povos e que não teria visto de passagem. A mulher emancipada no seu automóvel, a percursora de um “cubismo neoclássico” e a musa das elites, uma vez encoberta sob um apelido nobiliárquico que lhe não era original e num mundo onde a vida passava três e quatro vezes mais depressa, não foi capaz de adaptar a sua técnica limpa e concisa às várias manifestações artísticas que sucediam umas após outras. “Rei morto, rei posto”… e se ainda mal tinha tido tempo para dar os primeiros passos no abstraccionismo – que é dizer a negação do trabalho de uma vida – já a pop art entrava com vigor no espólio artístico americano. Foi a “morte do artista”: reduzida a uma socialite que dava uns “toques” na tela, Tamara de Lempicka, agora baronesa Kuffner, deixaria de expor os seus trabalhos em mil novecentos e sessenta e dois, dezoito anos antes da sua morte. E, pode-se dizer, assim morre um artista sem antes ter deixado de viver.
O desfecho da vida artística de Tamara de Lempicka, tão repleta de sucessos na pacatez do continente europeu, mais não foi que um dos muitos prenúncios daquele que viria a ser um dos muitos fenómenos que caracterizariam o mundo actual: a velocidade. Uma vez restabelecida a ilusão da paz e firmados os pilares da sociedade moderna, cedo se descobriu que esta se move a uma velocidade demasiado alta para se dar ao luxo de ter morar em casas… Por todo o lado explodem as ideias, os estilos, as modas e as correntes. E, neste mundo em constante ebulição, os homens vão marchando, um pé diante do outro, no relógio da mudança. Apenas já não são a Juventude Hitleriana e muito menos se encontram nos Alpes suíços.
Tamara de Lempicka não foi capaz de adaptar a sua técnica brilhante rápido o suficiente para acompanhar o ritmo artístico. A perfeição requer tempo, bem como o talento. E a pintora polaca conheceu o embrião do mundo que não abre as portas ao talento, muito menos à perfeição. Na verdade, nada poderá haver de tão inimigo do perfeito como a velocidade. Banalmente clamada como irmã do progresso, a velocidade surge mais como uma madrasta das velhas histórias que abafa a princesa enteada: hoje, por muito que nos façam crer o contrário graças à – novamente – velocidade da informação, não há o conceito de verdadeira evolução ou desenvolvimento. Isto porque não há tempo para desenvolver o que quer que seja. As coisas sucedem-se umas às outras a uma velocidade vertiginosa e não esperam pela velocidade do pensamento sobre elas. O mesmo se pode falar no mundo artístico: hoje dificilmente encontraremos, no meio das dezenas de correntes que surgem todos os dias, uma que esteja verdadeiramente consolidada, pensada e construída. Há, isso sim, todo um extenso “menu” de ideias mal enfornadas. Exigem-nos a criação, mas não nos falam do rigor. Querem mais casas e já não sabem construir pilares. Mandam-nos virar páginas de um caderno em branco sem permitirem que o escrevamos. E num mundo em que abundam os títulos profissionais (os substitutos modernos da nomenclatura nobiliárquica. Hoje quantos têm o título de Mestre sem sequer terem exercido uma profissão ou sem conhecerem exactamente o peso do título que carregam…), damo-nos conta que, na verdade, devido à falta de aprofundamento das ideias, poucos são os verdadeiros profissionais de coisa alguma…

Precisamos de tempo e o tempo é o grande impulsionador da inovação, do brilho, da perfeição e da técnica. Quem almeja superar-se a si mesmo e, sobretudo, acredita num futuro melhor para os homens, terá que acreditar também na importância do tempo que é no entender de muitos, paradoxalmente, “perder tempo”. É necessário abrandar o compasso do “desconcerto do mundo”, como dizia o Poeta, para que possamos fazer música. E por que o estranhamos, se até a própria música é, ela mesma, também produto do pensamento e da razão?


quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Margaridas e Pianos

São quase cinco da tarde; pequenina, de rosto engelhado pelas horas passadas ao sol e de passinho apressado, nas mãozinhas pequeninas a malinha de pano, a boina à cabeça e a música no peito e de uma flor tendo o nome, lá vai a dona Margarida pelas ruas desordenadas e cinzentas do Olival, uma vila no meio da natureza que não é de natureza nenhuma e onde os campos e os canastros tentam conviver de forma pacífica e encontrar o seu espaço por entre as moradias descaracterizadas e dispersas no horizonte. À chegada, como de costume, tira a chave do bolso, abre as portas do centro paroquial (é assim que a dona Margarida se afigura: uma espécie de alcaide dos tempos modernos) e dirige-se para aquela que aos domingos é a sacristia com um único propósito: estudar piano. Não que não tivesse qualquer familiar ligado à música: na verdade até tinha o irmão, que aprendera oboé na sua juventude. Mas os tempos ingratos eram outros e a (na altura) menina Margarida, não obstante o seu desejo e evidente vocação para a “arte das musas”, foi obrigada a servir como criada nas casas mais abastadas que a sua, que isto das artes não era coisa para meninas e, quando o era, tal seria apenas como mais um adorno para uma boneca de porcelana. As bonecas de palha, essas, tinham que se contentar com a secura amarga da servitude e da abnegação; mas, por vezes, por entre as palhinhas torcidas e retorcidas das quais eram feitas, esboçava-se timidamente o pequeno rebento de uma flor levada ao engano por entre as ervas secas… E não raras vezes essa flor era uma margarida…
A dona Margarida, com umas boas dezenas de Primaveras em flor e outras tantas pétalas maceradas - de saúde delicada (mas, ao mesmo tempo, resistente, ou não chamassem os latinos de “beleza perene” à fragilidade aparente da margarida), um olho que se esqueceu de como ver, a opressão no peito causada pela asma que a persegue desde a infância e a cabeça já gasta pelas múltiplas cirurgias e outras invasões a que esteve sujeita, isto ao ponto de lhe reduzir as capacidades de memorização e retenção de conhecimentos a um terço - … bem, ia dizer eu, a dona Margarida atreveu-se, ainda que de forma mais ou menos hesitante (pois todos os actos de coragem são iniciados sob o véu da hesitação), a cumprir o seu sonho de juventude. Aprender música, imagine-se! Aventurar-se, com todas as circunstâncias a que esteve (e está) sujeita, numa área para a qual, ouve-se, muitas vezes nem um jovem ou criança conseguem vingar, parece uma missão infrutífera, não fora o facto de (e agora é aqui que eu entro com o conhecimento de causa), enquanto professora da dona Margarida, poder afirmar exactamente o oposto do que o senso comum esperaria. A dona Margarida teve dificuldades, é certo. Mas isso também uma criança ou um jovem as tem e vão encontra-las ao longo da aprendizagem destinada à sua idade, mesmo aqueles que gozam de perfeita saúde. Apesar da minha idade ter muitas vezes uma relação de sinonímia com falta de experiência, aquilo que fui constatando e que aprendi a tomar como certo ao longo do meu percurso estudantil é que não existem melhores nem piores lutadores na batalha da vida: o que existe são armas diferentes e, portanto, diferentes estilos de combate. E em qualquer área da nossa existência, até nas do saber, este preceito pode ser verificado.
Fala-se pouco de pedagogia para adultos. Fala-se muito (e bem que assim o seja) de pedagogia para crianças. Na verdade, nunca houve melhor altura para se ser criança nem tanta preocupação com o bem-estar infantil como hoje, mas a aprendizagem, esquecemo-nos muitas vezes, não se fica por uns míseros doze anos de escolaridade obrigatória. Compreendo que para muita gente, contudo, a realidade seja essa: a certa altura todo o indivíduo chega a uma idade em que é esperado enquanto executor e não pensador. A cabeça, essa, tem que reagir e adapta-se. Eventualmente, por uma questão meramente selectiva, eliminam-se as sinapses que aparentemente não são necessárias à vida (pelo menos ao nosso ideal moderno de vida) e a cabeça torna-se mais rígida e adversa a novos conhecimentos: mas isto não por falta de capacidade (não confundamos capacidade com potencialidade, que esta última acredito que se vá esbatendo ao longo do tempo) mas sim porque deixam de ser criadas sinapses novas. Há já muito que foi desacreditada a ideia de que o cérebro estanca: sabe-se hoje que muda toda a vida do indivíduo e até de forma, consoante os nossos pensamentos predominantes. A máquina humana é, de facto, um invento fascinante. Contudo esta falta de elasticidade acreditada deve-se mais a valores do que propriamente a incapacidade: mais que no envelhecimento, a tónica encontra-se na rigidez do nosso estilo de vida. O nosso perfil adulto também nos pode causar entraves: com a idade perdemos a ingenuidade das crianças e os olhos com que vemos qualquer coisa de novo como uma maravilha a descobrir. Eventualmente ensinam-nos a desconfiança e a rigidez de ideias, sobretudo o hábito de ver as coisas de forma mais complicada que a realidade. O mundo que antes nos era claro torna-se distorcido e oculto sob as cortinas da insegurança. Isto porque ser-se adulto, na verdade, é ser-se inseguro.
Tenho uma fé extrema no potencial humano: repele-me pensar (e talvez eu até esteja errada) que uma criança tem mais facilidade que um adulto para aprender um novo domínio. Como poderá isso ser sequer possível, se um adulto tem, à partida, um entendimento lógico mais apurado? Mais que as cerebrais, uma vez destruídas as barreiras psicológicas e sociais que impedem um adulto de aprender, chegamos à conclusão que as dificuldades são as mesmas mas em polaridades opostas. Não raras vezes esse é o argumento mais usado por adultos corajosos em aprender quando lhes parece que falham numa tarefa: o argumento de que “se eu fosse uma criança seria outra coisa”. Aos meus poucos alunos que me interpelam com essa hipótese, dou por mim a responder o mesmo: mas com certeza. Se fosse criança teria as facilidades que não tem em adulto; mas em adulto tem as facilidades que não tem em criança. O mesmo se aplica às dificuldades. Contudo não raras vezes a sociedade pode ser implacável: a título de exemplo, conheci a dada altura uma rapariga da minha idade que se quis aventurar também nas malhas da música. Tal como eu, pouco mais que duas dezenas de Primaveras tinha visto e contactou um professor da nossa faixa etária. A resposta foi peremptória: que estas coisas têm uma idade própria e que não valia a pena. Ora uma situação destas (que mais não é do que um pequeno espelho da maneira como é vista a pedagogia para adultos) é, com todo o peso que possa ser colocado nesta palavra, no mínimo aberrante e, sobretudo, elitista.

Até lá a dona Margarida toca e vai sonhando, o olho que se esqueceu de ver perdido talvez nalgo mais para além da cor… Segue para o centro paroquial quando estudar na mesa de madeira já não basta e vai cantando. E é essa canção que queria partilhar convosco e que guardarei com estima num jardim perdido junto ao peito…





quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Das Palavras

          São nove horas: sei-o pela visita que, de rompante, me invade o pequeno espaço alugado de uma sala numerada com três dígitos. O aviso é o do costume: às nove da noite há espectáculo e até que este acabe cessam também os ensaios individuais dos múltiplos estudantes que, noites após noite, mais ou menos longe de casa, se esforçam para que um país de surdos se embeba no doce som da flauta de Euterpe. Ouvem-se passos apressados no corredor e portas que batem; eu, na minha vez, fecho a tampa do teclado de um piano vertical escuro, meto as partituras na mala e quedo-me sentada no banco, os meus pensamentos ainda a retornar do espaço sideral do qual foram tão brutalmente puxados. Só mais tarde fechei também o cravo: não que eu saiba tocar cravo mas, à semelhança de quem toca, também a curiosidade toca a todos. Lembro-me de ter pensado o quão feminino era o cravo comparativamente com o piano: tanto o som como as dimensões e o pedaço de arte que o cravo é fazem-me pensá-lo quase como uma noiva abandonada no altar, em detrimento de um outro alguém qualquer, vestido de cerimónia, que ora anda erecto ora curvado e que ao longo na história não tomou partidos nem preferiu senhores, das camadas mais altas às mais baixas. Com isto não quero duplas interpretações: o facto de eu considerar o cravo mais semelhante ao espírito feminino e o piano ao masculino não significa obviamente que destino o cravo às mulheres ou o piano aos homens, para além de que muitos certamente encontrarão, com uma sensibilidade diferente, a associação oposta da minha. De qualquer forma saciei a minha curiosidade: transportei o banco do cravo que se encontrava, qual criança amuada, sozinho a um canto da sala e sentei-me. Era uma sensação semelhante à da troca de papéis, um “faz de conta” mental e privado e na peça encenada no palco da minha cabeça eu tocava cravo e não piano.
          Batem-me à porta. Sossego o segurança que entra e afianço-lhe que não toco, que estou apenas a “fazer tempo” (como se tal fosse possível, efectivamente fazer tempo) até que o espectáculo acabe e torno a embrenhar-me nos meus pensamentos. De soslaio o piano sorria com aqueles dentes enormes. É sabido que mesmo a mais triste das peças é “cantada” por um piano sorridente. O piano surge, assim, como um cisne negro que em exaltações de júbilo veste luto e que canta na desgraça. Talvez todos nós, a certa altura da vida, sejamos pianos. A dicotomia homem/mulher assoma-me novamente ao pensamento. Esboço um pequeno monólogo em como a principal causa da persistência da injustiça entre géneros se deve unicamente à existência das palavras. Haveis de reparar no curioso que é o facto de apenas entre humanos e animais domésticos (por estarem mais perto de nós) haver a distinção entre macho e fêmea com denominações diferentes e de, na vida selvagem (salvo a excepção do leão por razões óbvias), essa distinção não existir. Cá existem os homens e as mulheres, os cães e as cadelas, os gatos e as gatas, as ovelhas e os carneiros. Lá fora existem as girafas, os linces, os elefantes, os pássaros, os tigres e basta. Tal facto faz-me pensar se o género não seja, na verdade, uma abstracção social e se, na verdade, a Natureza não conhece géneros. Acredito que só no dia em que desaparecerem as palavras “Homem” e “Mulher” haverá uma mentalização a nível mundial de que na verdade tudo se reduz a “pessoas”.
          Não raras vezes as palavras, por muito úteis que sejam para a compilação do que pelo menos achamos conhecer do mundo e até este texto está em palavras, muitas vezes na verdade limitam a experiência do que nos rodeia. No seu longo poema “Da Natureza” o filósofo pré-socrático Parménides de Eleia expõe exactamente uma ideia semelhante: a deusa, puxada no seu carro astral, ensina ao homem que as palavras o levam ao caminho da opinião e que só a falta das palavras levará à verdade. Isto porque as palavras, para além de fragmentarem o “Ser” de que fala Parménides, é dizer, a unidade (como no caso homem e mulher), também podem pecar vista a questão por outro lado por unificar o que é diferente e com isto levanto-me, pego em quatro cadeiras distintas da sala e explico o conceito a uma plateia invisível. É do senso geral que cada um daqueles objectos é denominado cadeira porque estipulámos que tudo o que tenha um determinado conjunto de características em comum seja uma cadeira. Mas por outro lado serão todas a mesma coisa? Até que ponto o podemos dizer? Uma era azul e tinha três pernas; outra era de abrir e fechar e era vermelha, outra era também vermelha, mas tinha quatro pernas e nem abria nem fechava e a quarta era de madeira. Poderei eu dizer que são todas a mesma coisa? Até que ponto a existência da palavra “cadeira” não é limitativa para o conhecimento das coisas, neste caso, das coisas que reduzimos a serem cadeiras? O Tao Te Ching, livro taoísta de aforismos cuja autoria é atribuída à figura enigmática de Lao Tzu, apresenta uma ideia semelhante quando atesta que “o excesso de palavras conduz a menor compreensão”. Séculos mais tarde David Hume tentaria explorar esta libertação das palavras disfarçadas na forma da razão ao defender que o conhecimento real das coisas deriva da experiência. No final tentemos não ser tão extremistas, mas pensemos como seria a nossa visão do mundo se acaso um dia nos conseguíssemos libertar, por uns breves instantes, simplesmente do nome atribuído a todas as coisas: ao longo dos séculos tem-se prezado a razão e as palavras sobre a “tábua rasa” a que comummente chamaram emoção e não raras vezes esta é vista como sendo de escalão inferior e esquecemo-nos que se as palavras levam ao entendimento só a emoção leva à compreensão. Talvez a emoção seja o nível superior à razão, pois a compreensão advém do entendimento.
          Mesmo a espada das palavras deverá ser manejada de forma sensata, esta espada de dois gumes que desune o que é uno e que une o que é distinto. Contudo não raras vezes a espada vira-se contra aquele que a brande…


quinta-feira, 21 de setembro de 2017

O Mito da Tartaruga

São muitas as histórias da nossa infância que nos transmitem ensinamentos de maneiras que nem cuidamos(!). Disse-me uma contadora de histórias um dia o seguinte segredo: não há contos/fábulas para crianças; o que há é histórias disfarçadas pelo imaginário infantil que transmitem ideias de adultos e para adultos. Por isso sempre foi, a meu ver, uma grande perda não sensibilizar o público adulto para as necessidades de ler e valorizar contos “infantis” e já nem falo na crescente falta de literacia visual (sim, porque também a existe) a que o público adulto está sujeito. Considera-se a imagem um acessório para crianças, nada mais, desprovida de todo o seu carácter intelectual, artístico e simbólico, porque também é necessário pensamento abstracto para “ler” imagens. E porque hoje a imagem é em muitos casos tratada como auxiliar e não como fim em si mesma, também me custa a entender por que é que a indústria livreira perpetua a ideia de que aquilo que diferencia sobretudo um livro para “as pessoas crescidas” de um livro para os menos graúdos é a presença (ou falta) de imagens. É um estereótipo que já se encontra de tal modo inculcado em todos nós que demorará bastante tempo a reeducar (seguramente quase todos nos lembramos do orgulho que sentimos a primeira vez que pudemos dizer alto e bom som na nossa infância: hoje li um livro sem imagens!). Mas sigamos adiante.
De entre as histórias da nossa infância, também seguramente nalgum dia quase todos nós tropeçámos (fosse por intermédio de um livro ou da nobre arte da oralidade) na fábula d’ “A Tartaruga e a Lebre”. E rezava a história mais ou menos assim.
Um dia certa lebre galgadeira - porque a lebre galgava tomo para mim a liberdade de a classificar deste modo pouco ortodoxo -, em sabendo que a tartaruga a desafiara para uma corrida, acreditou que seguramente estariam a fazer pouco dela. Então não era a lebre a criatura mais rápida da floresta? Reservava-se por isso ao direito de troçar das pernas tortas e trôpegas da tartaruga, tão desengraçadas quanto aquele corpinho rude e enrugado, nem duro nem mole, duro por causa da casca, mole por causa da pele, enfim, um misto de tudo e de nada, de qualquer coisa que não se poderia bem dizer o quê. A lebre tinha, por seu turno, pernas possantes e ligeiras, essenciais para quem tinha que fugir da águia, do lobo ou da raposa na vida diária. Assim sendo, aquele desafio da tartaruga pareceu-lhe totalmente desprovido de bom senso e, por sê-lo, aceitou na hora. Mas haveria alguma dúvida?
Nomeada foi a Raposa como juiz da prova, num raro acesso de paz na cadeia alimentar. E no dia e hora marcada, lá estavam a lebre, a raposa e a tartaruga ocupando os seus lugares naquela que seria a corrida do século na floresta! Uma espécie de David e Golias da velocidade! E todos sabemos como terminou a história de David e Golias…
Não havia, de facto, grandes debates acerca daquela corrida. Assim que a raposa deu o sinal de partida, já a lebre se precipitara para dentro da floresta densa, longe da vista dos demais animais, enquanto a tartaruga lentamente se arrastava de ventre no chão, roçando a relva fina com o bojo que empurrava. Todos conhecemos decerto uma tartaruga nas nossas vidas, geralmente sendo um de dois indivíduos: é aquele que não tendo capacidades ou estofo para uma dada empresa se atira irracionalmente para um desafio que quase de certeza não poderá cumprir (primeiro) ou aquele que certamente tem uma fé imensa no acaso ou no divino e acredita que “Deus providenciará” e ala, que espera-se um milagre nos entretantos (segundo). E seguramente terá sido um misto dos dois, porque já perto da meta a lebre achou por bem tirar uma valente sesta enquanto a sua colega comia o pó da terra à conta de uma corrida infrutífera e na qual não haveria outra possível ganhadora. Estendeu-se então ao comprido sob uma árvore de folhas largas e adormeceu, tão somente. Qual não foi o seu espanto quando, acordada por salvas e urros, viu que a desprezada tartaruga cruzara a linha da meta! Em vão se levantou e correu com todo o poder das suas duas patas, em vão julgou estar a dormir ainda porque era efectivamente verdade, a tartaruga tinha cruzado a meta e ela, a lebre, tinha sido despojada do seu título de animal mais veloz da floresta!... O esforço hercúleo da tartaruga é, portanto, condecorado com a seguinte moralidade: devagar sempre tudo se alcança ou, por outras palavras, devagar se vai ao longe.
Agora, uma ressalva: não pretendo, com este texto, desvalorizar qualquer fundo de veracidade em tão sábia premissa, porque efectivamente também a vox populi nos diz que “depressa e bem não há a quem” (citar a voz do povo é sempre um produto de risco porque este também se engana e muito, embora saibamos que in dubia pro reo e vale sempre a pena confiar um bocadinho na sabedoria popular até prova em contrário). Também não pretendo reivindicar a palma de ouro para a lebre, para o bem ou para o mal faço parte daquela geração que acredita que os arrogantes devem provar um pouco do fel da sua soberba e acreditar na vitória da humildade verdadeira sobre a altivez vã faz sempre este mundo ser (e parecer) um pouco mais bonito. Contudo sempre me quis parecer que esta fábula, tão simples no enredo, devesse ser vista mais do ângulo da lebre que do da tartaruga.
Não nos queiramos enganar: a tartaruga ganhou por sorte. Não foi porque devagar se vai ao longe ou porque devagar tudo se alcança. Foi sorte de principiante, nada mais. Tivesse a lebre sido mais lestra e menos altiva e teria derrotado a tartaruga antes de esta sequer completar um quarto do caminho. A sesta da lebre foi a morte do artista(!). Isso não quer dizer que o vencedor, por seu turno, seja algum artista. Poderemos então nós considerar na verdade a tartaruga como sendo ainda mais soberba que a lebre? Quem no seu perfeito juízo, não tendo uma ideia clara sobre as suas capacidades, desafia quem as tem por natureza ou instinto? Uma história que tinha noventa e nove porcento de probabilidades de sair mal para o lado da irresponsabilidade ingénua da tartaruga terminou, por sorte, na vitória da menos apta. Tivesse a tartaruga desafiado a lebre para alguma das suas habilidades naturais, porque seguramente também as teria e a lebre, em falhando, teria aprendido decerto que a cada um cabem os seus talentos com justeza e que por isso na diferença somos todos iguais. Desafiar um profissional no seu território tem tanto de louco como de altivo. A lebre, por seu turno, falhou miseravelmente à conta da sua própria arrogância, não do talento (nulo) da adversária. Mudar a moralidade da fábula então para “Olho fino e pé ligeiro, que até grandes impérios caíram à conta de futilidades de um momento” ou para “Nunca tomes nada por garantido; até com as tuas capacidades alguém mais atento pode revelar-se aparentemente mais capaz do que tu” parecem-me lições mais honestas e úteis do que vender constantemente a ideia de que com uma atitude de laissez-faire, laissez passer chegaremos na certa aonde desejamos.
Sempre me mostrei apologista da ideia de que para tudo é preciso tempo: as coisas precisam de um timing para se desenvolverem com tronco, pés e cabeça, algo nem sempre disponível nestes tempos modernos de mais celeridade e menos pensamento/qualidade. Não vou desdizer-me nesse assunto. Esta lição da lebre e da tartaruga vem apenas dar luz ao outro lado da moeda a respeito desta temática: o de que até para o tempo é necessário encontrar um óptimo de Pareto entre a tensão e a distensão, entre a acção e a espera, entre o realismo e a fé. A lebre efectivamente podia ter dormido a sesta, mas não tanto tempo, embora o melhor mesmo fosse não ter dormido sesta nenhuma. São escolhas que, em fugindo do óptimo razoável quer por excesso ou por defeito, se revelam como precipitadas ou estéreis.

Em cada um de nós há um pouco de lebre e tartaruga, um pouco de confiança garantida e um pouco de crenças irreflectidas. Ambas são prejudicadas pelo pecado do orgulho desmedido. Contudo, no fim do dia, nunca deixemos que seja a nossa tartaruga a ganhar a corrida! Lembremo-nos de acordar antes a lebre, que o desperdício das nossas qualidades é capaz de ser um pecado tão grande ou maior que a própria soberba!