Foi
em 1935 que saiu a primeira versão impressa das obras para teclado de José
António Carlos Seixas. Desta versão, o primeiro volume de “Cravistas
Portugueses”, generosamente custeada pela editora B. Schott’s Söhne, constavam
apenas doze das centenas de sonatas que o compositor teria criado durante os
seus parcos trinta e oito anos de vida e fazem hoje parte do espólio que
sobreviveu, quer ao tempo, quer (imagine-se!) ao incêndio que deflagrou no
Palácio da Ajuda de Lisboa aquando o terramoto de 1755. Longe de apresentarem o
arrojo do mestre de Coimbra, mas ainda assim um marco importante na percepção
estrangeira sobre a música portuguesa, esta dúzia de sonatas primou de atenção
de musicólogos e intérpretes internacionais. Estava lançada a primeira pedra na
reconstrução de um território há muito perdido nas estepes nacionais, o da
música do passado português.
A
Sonata nº 8 em Dó Maior faz parte desse território. Dotada de um espírito
pomposo mas nada provinciano (ou não adoptassem as várias sonatas de Carlos
Seixas um estilo declaradamente lusitano), esta sonata, junto com as restantes,
anunciou os primórdios da forma-sonata clássica. Com efeito, apesar de no seu
tempo terem sido chamadas “tocatas” por possuírem uma estrutura bipartida, o
facto é que nas sonatas para teclado de Carlos Sextas podemos ver o estado
embrionário da noção de “andamento”: as “tocatas”, para além da parte inicial e
da quase-sempre-dança final, apresentam uma ponte musical intermédia de carácter
contrastante, muitas vezes melodioso e introspectivo, prenúncio dos segundos
andamentos lentos e galantes da sonata clássica. Ainda que Carlos Seixas
denotasse uma forte resistência em adoptar estilos estrangeiros, não poderemos
negar as influências francesas e sobretudo italianas nas obras para teclas do
compositor, não fora então o seu convívio com Domenico Sclarlatti, ele próprio
preceptor de música da princesa Maria Bárbara de Bragança durante um curto
espaço de tempo, até à mudança da infanta portuguesa para Madrid por ocasião do
seu casamento com o príncipe herdeiro da coroa espanhola.
Contudo,
fora Portugal um país central e as obras do mestre de Coimbra teriam voado para
mais altas paragens! Não é no pássaro que está a capacidade para voar e sim nas
asas e José António Carlos Seixas (não confundamos capacidade com habilidade)
quedou-se pelos céus solarengos mas muito pouco abertos do território
português. Não se julgue portanto que tal se devesse a falta de talento ou
ainda de empreendimento, ou não fora Carlos Seixas o compositor da corte numa
época em que brotavam miniaturas não menos dignas do esplendor de Versalhes
levadas a cabo por D. João V, o Magnânimo. Magnânima poderia ter sido também a
sua vontade que, à semelhança do que sucederia nos séculos posteriores, o que
nasce em Portugal em Portugal está, neste “canteiro à beira mar plantado” de
difícil acesso (por diversas vezes Portugal pecou simplesmente devido à sua
posição geográfica, tão útil para “dar mundos novos ao mundo”, mas tão ingrata
para trazer o mundo para dentro!) e para o qual, se era difícil chegarem as
novidades artísticas do resto da Europa, também difícil era para um artista
português mostrar o seu rosto lá fora. As veias da criação morriam em Espanha,
o coração da Península e, se acaso derramassem uma gota que fosse para lá dos
montes de Pirene, tal se afigurava um acontecimento fortuito cujas repercussões
raramente voltavam à origem. Assim esteve a música de Carlos Seixas até ao
início do século XX, sufocada na própria terra em que deu flor e tendo como
único perfume o cheiro bafiento de colecções particulares e de arquivos por
muito tempo intocáveis. Lembremos o modesto lírio-do-vale que, pelas noites de
Maio, agracia a Natureza com o seu misterioso mas distinto perfume. Não poderemos
encontrar um lírio-do-vale vibrando jubiloso com as boninas durante os cálidos
dias de Primavera. A Beleza e a Criação são, elas própria, produtos das
existência das sombras em superfícies iluminadas. Luz descompassada torna o
mundo disforme. É a sombra dá a identidade. E, perguntemo-nos: até que ponto a
redescoberta e valorização do que há de mais sombrio e oculto no passado
português não será outro futuro mundo a dar ao mundo?